segunda-feira, 16 de abril de 2012

O que te torna uma pessoa, afinal?



Outro dia, fiz uma piadinha no Twitter a respeito de um gato sumido e, logo em seguida, "ouvi" um protesto curioso como réplica: "se fosse o filho dela, ela não falaria assim"; ou algo nesses termos. Naturalmente, eu nada respondi, afinal, não estou disponível para bate-bocas com desconhecidos. Porém, considerei a manifestação bastante simbólica com relação a um movimento que me parece ganhar cada vez mais força em nossa época: o daqueles que reivindicam que animais sejam incluídos na categoria moral de pessoas. Veja bem, não se trata propriamente de reconhecer a finitude e mesmo a animalidade do humano, mas sim, inversamente, de humanizar os animais. Por isso mesmo, confesso que meu primeiro impulso é simplesmente considerar os ativistas desse tipo de causa como gente, no mínimo, desprovida daquilo que Kant chamou de "natürlichen gesunden Verstand" em sua Fundamentação da metafísica dos costumes.


Certamente, concedo que, uma vez que você não disponha de um sistema metafísico-religioso para classificar a criação conforme a presença ou não de uma alma concedida pelo Criador à sua imagem e semelhança, pode haver dúvida teórica a respeito do critério segundo o qual concederemos ou negaremos dignidade moral a um ente qualquer. Melhor ainda, especialmente em um mundo pós-Darwin, a própria noção de "dignidade moral" deve se tornar problemática.

Assim, explico que meu espanto perante aqueles ativistas se dá, primeiramente, pela inversão do que penso que deveria ser a questão teórica. Em vez de se perguntarem por que algum ente ainda deveria ser digno de respeito, uma vez que sejam todos igualmente desprovidos de alma, devotam respeito para lá e para cá, quase que indiscriminadamente, em uma espécie de reencantamento da natureza.

Além disso, em um nível puramente prático, causa-me espanto que aquele bom senso natural de que Kant falava não baste para nos guiar, dispensando o ensinamento de filósofos ilustrados ou iluminados, no que diz respeito ao que, ou, melhor dizendo, a quem devemos respeitar. Sendo assim, mais do que nunca é hora da filosofia tratar de esclarecer o que é próprio do humano, isto é, o que poderia nos colocar acima das bestas e nos tornar exclusivamente dignos de respeito, por mais animais que sejamos.

Parece-me que poderíamos, grosso modo, separar os ativistas que temos em vista em duas categorias não mutuamente excludentes: os intelectualistas e os sensualistas. Os primeiros acreditam que todo ente capaz de resolver problemas teóricos é digno de respeito. Os segundos acreditam que tudo que sente prazer e dor merece ser respeitado.

Prima facie, eu não vejo o que há de intrinsecamente respeitável em um ser capaz de calcular e/ou de sentir. Em outras palavras, eu não vejo por que seríamos promovidos da categoria de coisas para a categoria de seres humanos meramente por sermos capazes de sentirmos e/ou pensarmos. Quero com isso também afirmar que não penso que, quando os demais animais eram tranquilamente excluídos da categoria de pessoas, o fato se dava apenas porque, como Descartes, tomávamos animais como máquinas, ou ainda porque eles seriam considerados totalmente desprovidos de habilidades intelectuais. Nesse sentido, pouco importa então que, agora, atribuamos um mundo interno aos animais ou ainda que descubramos que eles são mais bem dotados intelectualmente do que poderíamos supor há algumas décadas.

Pois bem, se não era meramente pelo fato dele ser capaz de sentir e pensar que colocávamos o homem acima dos animais, não será por passarmos a atribuir tais capacidades aos animais que os colocaremos no mesmo patamar moral do homem. Mas o que, então, se não uma alma imortal, torna o homem humano?

Dizem que um papagaio pode resolver problemas matemáticos de alguma complexidade. Já uma vaca poderia sentir quando está no "corredor da morte". Enquanto isso, o homem não é simplesmente um animal intelectualmente mais hábil do que um papagaio, um chimpanzé ou um golfinho e ainda mais sensível do que uma vaca ou um porco. O homem é o único animal que tem a capacidade de calcular e tomar o resultado do seu cálculo como um motivo para suas ações, sem a presença imediata do móbil sensível no contexto da ação. Em outras palavras, apenas o homem possui aquilo que Kant, na mesma obra mencionada acima, define como "vontade": a capacidade de agir segundo a representação de leis, e não apenas segundo leis.

É por constatarem a ausência de vontade nos animais que mesmo quem fala em "direitos" dos animais, não fala também em "deveres". Ninguém quer construir cadeias para que os animais paguem por seus crimes. Animais simplesmente não cometem crimes, porque seres sem vontade simplesmente não podem ser imputáveis pelo que quer que façam! Ora, isso significa que apenas um ser dotado de vontade pode ser um agente moral ou uma pessoa.

Claro que você ainda pode dizer: "Ah, mas as pessoas podem respeitar os direitos dos animais!" Acontece que o ponto é exatamente por que atribuiríamos direitos e dignidade moral ao que justamente não pode ser um "quem" no âmbito moral. Só uma vontade pode ser respeitada! Isso não implica que temos licença moral para infringirmos dor sem propósito aos demais animais, o que é característico da crueldade e, certamente, não é um traço que deva ser cultivado em pessoas. Mas implica que exigir que animais sejam tratados como se fossem pessoas, jamais sendo instrumentalizados, não passa de mais uma das grandes tolices teóricas e perversões práticas desta nossa época pós-moderna de pouco esclarecimento.

4 comentários:

  1. Fiquei contente por vc ter lido, mais ainda por ter gostado :-)

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  2. Faço das suas palavras as minhas. Gostaria de ter vocabulário suficiente para reproduzir o que escreveu.

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