domingo, 27 de outubro de 2013

Libertarianismo e... Ele


Como se sabe como uma constatação de fato, muitos auto-declarados libertários são conservadores religiosos. Tenho cá para mim que essas pessoas usam a etiqueta "libertarianismo" para classificar qualquer teoria política relativa à mínima intervenção estatal. Parece que os conservadores americanos não gostaram da apropriação do termo "liberalismo" por parte da esquerda de seu país, que pouco tem a ver com o liberalismo clássico, e então passaram a se auto-denominar libertários para marcarem que, à sua maneira, também carregam a bandeira da liberdade. Afinal, não pega bem ser visto como o opositor político dos defensores da liberdade, ou seja, dos liberais. 

Até aí tudo bem. Você pode mesmo ser um conservador - até mesmo um conservador social - e um defensor do Estado mínimo, no sentido em que você, socialmente, reprova, por exemplo, a união entre pessoas do mesmo sexo, mas não pensa que o Estado deveria interferir nesse tipo de matéria. Porém, o modo como eu, particularmente, penso a filosofia política libertária não é moralmente neutro. Assim como Nozick, eu penso a filosofia política como uma doutrina delimitada e fundamentada por uma filosofia moral. Isso significa que, antes de mais nada - antes de uma teoria do Estado - eu acredito em uma moral libertária. Bom, nesse sentido, eu não penso que o libertarianismo seja compatível com a crença na existência do Deus cristão. Explico.

Eu já vinha pensando há algum tempo que uma moral libertária teria que ser uma moral ateia, ou, melhor dizendo, uma moral que um amigo meu definiu outro dia em uma conversa particular como "radicalmente agnóstica". O que significa esse tal "agnosticismo radical"? Nas palavras desse meu amigo, significa agir como se Deus não existisse. Ora, é exatamente assim que eu penso que um libertário, da forma como eu entendo o libertarianismo, deve agir. Por quê?

Para que eu justifique a minha alegação, preciso remeter meu paciente leitor ao pesado texto de Nozick, Anarquia, Estado e Utopia. De um modo que eu venho tentando reconstruir a partir de premissas kantianas, Nozick apresenta sua filosofia moral com base na ideia do indivíduo como alguém cercado por uma barreira que ele, e somente ele, teria o direito de abrir. Assim, qualquer transgressão a essa barreira do direito natural que cercaria o indivíduo seria pura e simplesmente imoral. Por outro lado, não haveria nenhuma violação se o indivíduo, voluntariamente, abrisse essa barreira. Em suma, cada indivíduo seria como uma ilha privada, que você não pode invadir, mas onde pode entrar com autorização do proprietário. Mas quem é esse proprietário? É aí que está, meu caro leitor, o proprietário é o próprio indivíduo, não é Deus!

Por que isso é relevante? Bem, eu digo que faz toda a diferença e, para lhe explicar por que, permita que eu lhe apresente uma diferença de implicações bastante práticas e concretas entre Nozick e o clássico dos clássicos liberais: Locke. No capítulo 4 de Anarquia, Estado e Utopia (p. 58 do original), Nozick diz:

Uma pessoa pode escolher fazer consigo mesma, eu devo supor, as coisas que violariam seus limites quando feitas por outro sem seu consentimento. (Algumas dessas coisas podem ser impossíveis para ela fazer a si mesma). Além disso, ela pode dar ao outro permissão para fazer essas coisas a ela (incluindo as coisas que são impossíveis para ela fazer a si mesma). O consentimento voluntário abre as barreiras para que sejam cruzadas. Locke, certamente, defenderia que há coisas que os outros não podem fazer a você com sua permissão; a saber, aquelas coisas que você não tem o direito de fazer consigo mesmo. Locke defenderia que o fato de você dar sua permissão não torna moralmente permissível que outro lhe mate, porque você não tem o direito de cometer suicídio. A minha posição não paternalista mantém que alguém pode escolher (ou permitir a outro) fazer a si mesmo qualquer coisa, a menos que ele tenha adquirido uma obrigação com uma terceira parte de não fazer ou não permitir que seja feito.
Ora, Nozick tem toda razão em sua leitura de Locke. Logo no §6 do Segundo Tratado, Locke diz:
homens, sendo todos o produto de um Produtor onipotente e infinitamente sábio; todos servos de um Mestre soberano, enviados ao mundo por sua ordem, e em nome de seus propósitos; são sua propriedade, pois são seu produto, feitos para durarem o quanto ele quiser, e não o quanto outro quiser.
As diferenças morais entre o libertarianismo e o liberalismo clássico, mais afinado com a religiosidade dos conservadores americanos, saltam aos olhos a partir dessas duas passagens! Em Nozick, não há paternalismo, porque não há um Pai, não temos um Mestre, não somos propriedade de ninguém mais. Em resumo, não há ser acima do homem, de modo que apenas sua vontade (a do homem, de cada indivíduo) decide o que pode ser feito de si. Já em Locke, somos livres apenas no sentido em que, na terra, não temos um superior natural, destinado a nos governar. Mas, na ordem geral do universo, temos, sim, um Senhor natural, um Mestre, de modo que nosso consentimento não basta para tornar moralmente permissível o que for feito de nós. 

É nesse sentido, enfim, que eu defendo que o libertarianismo seja uma doutrina do agnosticismo radical, isto é, uma doutrina baseada, não na negação teórico-científica da existência de Deus, posto que tal coisa seria impossível, mas no mandamento: "aja como se Deus não existisse!" É só agindo como se não houvesse um Ser superior, que nos criou para cumprir seus próprios desígnios e a quem pertencemos, que podemos agir verdadeiramente como auto-proprietários e senhores de nós mesmos. E é só assim que podemos adotar, coerentemente, uma filosofia moral que diz que tudo é permitido... desde que o indivíduo consinta.